27.12.07

Oficcina Multimédia: 30 anos



O grupo Oficcina Multimédia de Belo Horizonte comemorou seus 30 anos lançando um livro com registros da sua trajetória. O livro tem a autoria de Ionde Medeiros, uma das fundadoras do grupo e encenadora.

Os registros do Oficcina Multimédia constituem uma contribuição muito importante para a história das artes cênicas no Brasil. Principalmente pelo fato de ser um grupo de vanguarda, pioneiro em Belo Horizonte quanto ao experimentalismo, incluindo a contaminação entre linguagens artísticas, as criações híbridas e, por fim, devido à radicalidade de sua poética de encenação. Por muito tempo o Oficcina foi marginalizado, considerado hermético, mas a persistência de Ione Medeiros, sua dedicação e sensibilidade, aliada à sabedoria de dar espaço para a autonomia de performers jovens e corajosos, consolidaram uma linguagem e um modus operandi em pesquisa e criação cênica.

Qual o segredo do Oficcina Multimédia?

De modo ligeiro:

a) a trajetória que começa, de um lado com o músico e compositor argentino Rufo Herrera, que já havia desenvolvido, nos anos 70, um Laboratório Multimédia;

b) de outro lado, com Berenice Menegalle, que havia criado a Fundação de Educação Artística de BH (o Oficcina nasceu ali dentro e é uma extensão da instituição), que por sua vez já sofrera nas pesquisas de iniciação e formação musical as influências do músico e compositor Koellreutter (que difundira no Brasil o experimentalismo e o caráter de laboratório de criação);

c) o trabalho corporal de Mônica Ribeiro, voltado para um espaço entre dança e teatro, configurando uma energética pulsional do movimento, uma rítmica que formou as bases do treinamento do grupo;

d) a dimensão musical acurada e associada a uma enorme sensibilidade plástica (Ione sempre estudou artistas plásticos junto com o grupo para suas montagens, sem falar na pesquisa e design de objetos de cena, cenário e figurinos).

E o que mais?


Melhor é ler o livro.


Referências e outras informações:

MEDEIROS, Ione. Grupo Ofcicina Multimédia: 30 anos de integração das Artes no Teatro. Belo Horizone: I.T. Medeiros, 2007.
Imagem: Espetáculo Acusação - foto de Glênio Campregher
E-mail: contato@oficcinamultimedia.com.br

24.12.07

Assis Valente: felicidade é brinquedo que não tem...



Então, é Natal. Não fosse a cisão que atravessa nossas sociedades (de mercado), seria um ritual ou um costume, ou algo assim. Mas não é disso que se trata. Comemora-se, não se sabe bem o quê... Nem todos os grupos humanos comungam com a idéia de Natal, mas quase todos estão submetidos à civilização ocidental-cristã e suas mutações. Por exemplo: uma comemoração religiosa transformar-se num grande mercado mundial!

Um de seus subprodutos foram as músicas natalinas. Porém, nem sempre os requisitos da encomenda, entre eles o de embalar as consciências,foram atendidos. Assis Valente, o pré-socrático do morro, como dizia Jorge Mautner, fez outra coisa, completamente diferente: abriu a nossa ferida. O genial compositor que tentou suicídio três vezes e viveu oprimido pela sua ambiguidade sexual, apaixonado por Elvira Pagâ e depois por Carmem Miranda, compôs sua canção natalina, fugindo dos estereótipos:

Anoiteceu, o sino gemeu
E a gente ficou feliz a rezar
Papai Noel, vê se você tem
A felicidade pra você me dar
Eu pensei que todo mundo Fosse filho de Papai Noel
E assim felicidade
Eu pensei que fosse uma
Brincadeira de papel

Já faz tempo que eu pedi

Mas o meu Papai Noel não vem
Com certeza já morreu

Ou então felicidade
É brinquedo que não tem


Quando eu era menino, eu ouvi isso no rádio e tomei consciência, pela primeira vez, de que o Natal não era para todos... O rádio era assim, conectava-nos com um ausente-presente, introduzindo uma voz na paisagem do interior de Minas Gerais. Aquilo mexia comigo. O drama sacudia o universo da vida comum, desequilibrando o céu que nos protegia.

Em outras palavras, Assis Valente expõe nossas delusôes , para fazer uma conexão com o Budismo.

Assis, o Valente, cortou os pulsos e não conseguiu morrer, pulou do Corcovado e figou enganchado numa árvore e por fim, numa tarde de 1958, tomou formicida com guaraná enquanto crianças brincavam em volta, numa praia.

Augusto de Campos montou o seguinte paradoxo para falar de Assis Valente e de sua obra: o felicídio da suicidade. Com isso, Augusto mostra que a poética nem se ampara num sentimento e nem retrata objetivamente o real, produzindo antes o impensável (na trilha de Deleuze). Se fosse a felicidade do suicídio ou o suicídio da felicidade teríamos dois retratos, um subjetivo e outro social. Ou, dito de outro modo, um niilismo e uma sociologia.

O Valente Assis viveu a plenitude do paradoxo. Que não tenha sobrevivido às suas questões, não é um julgamento, mas a constatação de que os seus tempos foram difíceis e muitas vezes há o suplício misturado ao canto. A vitoriosa Carmem Miranda, que se incomodava com a acidez e com a ironia lúdica dos versos de Assis, no momento de sucesso nos EUA, também foi ao chão, dia após dia, explorada pelo próprio marido e produtor.

Nem niilismo romântico e nem objetividade discursiva nos salvará - talvez essa seja uma das mensagens de Assis, o Valente. Aliás, um dos versos mais geniais é puro paradoxo-zen:

"sapateia na poeira sem pena
sem dó
a poeira é aquele que sapateou até virar pó"
.


Referências:

MpbNet - Assis Valente


9.12.07

Zikzira Teatro Físico: Eu vos liberto



Zikzira Teatro Físico traz um novo espetáculo: Eu vos liberto. Montado numa antigo depósito de tecidos, o 104 da Praça da Estação, em Belo Horizonte, o espetáculo abre uma zona sombria e espectral, configurando o cenário decadente de um palácio. A encenação tem por base a tragédia de Euclides, Hipólito, na qual Fedra vive o tormento de uma paixão incestuosa.

Fernanda Lippi e André Semenza, responsáveis pela criação corporal e cênica, respectivamente, continuam com a busca por um teatro físico visceral e, de certo modo, espectral. Acrescentam, para quem viu o filme As Cinzas de Deus e o espetáculo Verissimilitude, a vocalização. Em Verissimilitude, a vocalização se dava em pouquíssimos momentos, em sons inarticulados, que não remontavam a uma significação, deixando-nos num plano de sensações. Agora, o Zikzira Teatro Físico, após suas experiências com as vocalizações a partir das técnicas de Grotowski, arrisca-se no terreno de um oralidade mais explícita quanto à significação do texto.

Retomo alguns pontos. A questão do espectral: vejo que o teatro físico alimenta-se dos estados corpóreos, configurando mais espectros do que personagens dramáticos ou épicos. A figura, tão cara para uma arte narrativa e de conexões lógicas de significação, é des-figurada. Não pelo mergulho psicológico (teatro dramático moderno norte-americano, por exemplo, onde, em Longa Jornada Noite Adentro as personagens se desmancham, mas a representação está firmemente alicerçada em cena), ou mesmo épico-narrativo, com os seus enunciados discursivos diretamente para o público, mas sim porque o estados corporais e os desenhos intensivos tomam a composição cênica. Deleuze fala de uma lógica da sensação, quando aborda a pintura de Francis Bacon. Por ressonância, penso que os espectros do teatro físico, como o Zikzira desenha, aparecem primeiramente como figuras, mas são tomadas por forças desfigurantes. Deleuze diz que “em arte, tanto em pintura quanto em música, não se trata de reproduzir ou inventar formas, mas de captar forças”. Ele cita a fórmula de Klee: “não apresentar o visível, mas tornar visível”. E o que o teatro físico e pós-dramático realiza não é a figuração das personas, mas sim as forças invisíveis que atravessam os corpos.

Matteo Bonfitto faz uma distinção entre os actantes máscara, de um lado, e estado e texto, de outro. No primeiro caso, temos uma ação que informa sobre o ontem e o hoje da personagem, numa linha que Matteo Bonfitto chama de temporalização. Há uma relação de causalidade: o que o personagem faz informa sobre seu passado e cria uma tensão em relação ao seu futuro – entra-se, portanto, num plano de coerência e de lógica.

Quando, ao contrário, se entra no actante-texto ou no actante-estado, o agenciamento é outro. Nesse momento, Bonfitto diz que ocorre uma destemporalização da personagem. Aqui, diz Bonfitto, o actante espacializa-se. Ou seja, ele não se encontra consubstanciado num sujeito psicológico. Torna-se impossível encontrar ações que sejam funcionais para o desenvolvimento dramático. Não há mais meios, diz Bonfitto, que possam identificar em tal ser ficcional uma estrutura lógico-temporal. Ocorre uma dispersão do personagem – o encadeamento lógico-causal, próprio do drama, se frustra.

O elenco, com performers de várias nacionalidades (brasileira, argentina e coreana), mergulha nesse mundo espectral e nos remete às forças invisíveis. Estão comprometidos com a linha das sensações que perseguem durante todo o espetáculo. E isso é muito bonito de se ver.

Fernanda Lippi mostra, assim, que continua com sua busca por uma linha pulsional, de uma coreografia energética. Não se trata mais de dança, moderna ou contemporânea, apesar do universo que baila diante de nossos olhos. Essa é uma dança que se dá antes de modo mais intensivo e menos extensivo.

Quanto às vocalizações, em vários momentos sou afetado pela mesma viagem espectral e desfigurante das forças que tomam os corpos. Fernanda Lippi e André Semenza estão introduzindo, cada vez mais, as vocalizações nas criações cênicas do Zikzira. Tais forças sonoras resultam também de impulsos corporais, numa busca que parece partir dos ensinamentos e procedimentos de Grotowski. Eu vos liberto traz, além disso, outros planos vocais, como o cantor lírico sobre uma ponte acima dos atores.

São expressões vocais que viajam mais no plano das sensações do que das significações, o que me evoca a característica espctral do teatro físico que o Zikzira tem configurado.

No entanto, há um componente de representação na vocalização do papel de Hipólito, por exemplo, que me remete a um teatro no qual a figuração da fala é explícita e dada à significação, apesar do delírio que o plano ficcional nos arrasta. Explico: a fala em alguns teatros dramáticos ou épicos são igualmente capazes de produzir afecções poderosas, mas o aspecto representacional está lá, com a figuração (o personagem ficcional com sua história configurando uma persona no teatro dramático ou o mesmo pronunciando um discurso, apresentando um mundo, como ocorre no teatro épico).

Arrisco um pensamento: o texto épico ou dramático contém elementos de significação da ordem da figuração. Neste, as forças invisíveis estão em contato com as forças visíveis (o que é dito como confissão da personagem ou como expressão de um mundo objetivo), mas predomina o plano no qual o texto se impõe aos outros sentidos da cena (e o sentido deriva, afinal, do texto literário). Ora, Eu vos liberto busca outro plano (o das sensações) e, ao mesmo tempo, introduz o texto que traz sua carga de significação. São perguntas que me faço: o lugar do texto falado no teatro físico. O grupo Zikzira, agora introduzindo vocalizações provenientes de um texto épico/dramático, abre essa trilha de investigação.


Referências:

BONFITTO, M. O ator compositor. São Paulo: Editora Perspectiva. 2006
DELEUZE, G. Francis Bacon - Lógica da sensação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora.2007

Imagem: André Semenza - divulgação

2.12.07

Serras da Desordem - de Andrea Tonacci (2006)



Serras da Desordem, de Andrea Tonacci (2006), está nos circuitos de cinema. Uma obra do diretor do já clássico "Bang Bang" (1970), um filme essencial do cinema marginal, ou mais propriamente, como queria Jairo Ferreira, cinema de invenção.

Leonardo Mecchi, na Revista Cinética aponta para a "mistura singular entre o registro documental e ficcional, a utilização dos próprios personagens na reencenação de sua história (ecos tardios de Robert Flaherty?), os planos-seqüência dilatados no registro da vida primitiva, as seqüências de montagem e sobreposições de imagens, tudo colabora para uma experiência de imersão nesse registro audiovisual."

Tonacci ficou fora do Brasil por muitos anos e esteve filmando para as comunidades indígenas dos EUA. Fica evidente, em Serras da Desordem, seu olhar etinográfico. Mais do que isso, o filme traz as forças do cinema-linguagem de Tonacci. Ele não se prende a um discurso de retratista, antes fabricando, na indistinção entre ficção-documentário, a realidade própria do cinema. O território que o filme define nos coloca dentro, mais uma vez, nas trilhas que produzem o real, no sentido de capturar os momentos de extratificação: expropriação de vidas e significados, de riquezas e qualidades. O tempo todo, cortam trilhos e estradas, surgem cercas e desmatamentos, um indíviduo escapa e é recapturado incessantemente. Aqui, a arte não é um retrato do social, mas implicação de matéria e expressão.

Prestem atenção nos olhares da câmera de Tonacci nas seqüências em que Carapiru reencontra seu povo: são esses detalhes que escrevem as cartografias natureza/sociedade, apresentando nossos impasses. Não são imagens que representam esses impasses, mas que os expõem. No final, só posso dizer que preciso rever este filme contundente: um estudo de composição.